Eu sou o Blind Runner, aquele que não tem nada à sua frente e que inventa o caminho que vai pisar.
A 25 de fevereiro, tive ocasião de visitar João Louro, no seu atelier em Campo de Ourique, desenrolando-se uma conversa, a partir da qual, passados 2 dias, elaborei algumas questões que lhe enviei. A troca “simbólica” de perguntas e respostas foi por email, associada a alguns apontamentos complementares, via sms e pontuados por algumas fotografias do atelier que fiz nesse último sábado de fevereiro. O resultado segue, agradecendo ao João, todo rigor e profundidade nas suas reflexões lúcidas e pertinentes.
MFL / Na galeria Miguel Nabinho, quando da inauguração de uma curadoria de Filipa Oliveira (aqui há um ou dois anos), o João surgiu acompanhado pelos seu cães; fixei essa cena, como se fosse um episódio síntese corporalizando referências literárias (Dylan Thomas… retrato de um artista quando jovem cão; Kafka…investigações de um cão…). Daí, ocorreram-me perguntas possíveis (se os seu cães falassem…teria de os nomear, não sei como se chamam…): o que pensariam os seus cães sobre arte contemporânea? o que preferem?, estão acostumados, reagem? enfim… o João, conhecendo-os quanto sabe, o que opina, que conclusões deles apreende?
JL/ O Lennox e o Thor são os meus “buddys”… e as curiosidades que têm, não são sobre arte. São sensíveis às pessoas, aos ruídos, os movimentos bruscos… São “compagnons de route” sem perguntarem. Mas o olhar contra-picado dos cães sempre me interrogou. E algumas vezes utilizo essa perspetiva nas montagens que faço nas minhas exposições. Eles ensinam-me coisas, outras coisas, mas qualquer pensamento fora de exercícios especulativos , a la “Dylan Thomas” ou “Kafka”, leva-me a concluir que não há arte fora do humano. Não há pergunta fora do humano. E isso quer dizer muito de nós , pobres selvagens, demasiado selvagens ainda, mas mesmo assim estamos no topo da pirâmide evolutiva… Fazemos perguntas. Mas não há pergunta, nem arte sem o humano. Sem a cultura, ou uma cultura débil (um tema muito em voga nos tempos que correm), só há selvagens e caímos aos trambolhões da pirâmide evolutiva e, depois de rebolar, começamos logo a rastejar como os répteis (o que eu acho que já acontece muitas vezes). Não há também “arte natural”, isto é, se um líquen numa parede se parece à esfinge do Nixon, ou se uma nuvem se parece ao coelho do Koons, isso não é arte. Só há arte no humano,e para que seja arte, deverá existir um artista que produz ou a nomeia. E todas estas operações conceptuais só são entendíveis no universo do humano.
MFL/ O boxe,com seus arquétipos, atributos e protagonismos, no cenário societário, antropológico e mítico da cultura ocidental, a meu ver, possui uma carga estética marcante. Para além daquela que subjaz aos mitos pessoais (de boxeurs emblemáticos…) fixados na história factual, quando (re)criados enquanto personagens na filmografia, por exemplo… Por outro lado… como em alguns outros desportos, na minha opinião, trata-se da concatenação de movimentos, gerando tipificações coreográficas específicas.
Além de, parece-me, ser susceptível de propiciar um sentido a quem o pratique “traduzível”, externizável em ideias e movimentos de criação… em termos de modelos de fiscalidade que lhe seja próprio, individuado…
Ou seja, o João tem uma consciencialização do seu “corpo próprio” que diferencia ou não a dimensão física da obra a produzir? Ou esse domínio, a concentração, a coordenação, a exaustão, a superação… refletem-se em que termos (ou não)?
JL/ O boxe é uma atividade física intensa e também de resistência mental. Para além de exigir um grau de coordenação motora muito elevada, talvez uma dança imprevista, em que atacar e defender fazem parte das regras, o boxe cria uma filosofia de vida. Ele exige o respeito e valida os elementos fundadores do caráter. É uma disciplina. Nesse sentido, o sentido profundo dessa arte, “a nobre arte”, como se costuma designar, ensina, corrige e promove os verdadeiros sentimentos fundadores do homem: a amizade, a solidariedade, a superação, o sacrifício, a alegria,, etc. O universo do boxe oferece uma visão do humano, das suas capacidades e habilidades, das fraquezas e denuncia os cobardes, os cínico e os falsos. É uma disciplina para a vida, o que torna a vida mais clara e simples. E, nesse sentido, um lutador é um lutador. É para a vida. Não há caminho de retorno, não há dupla personalidade. E tudo o que se possa fazer na vida, será “tocado” por essa filosofia. É por isso que a disciplina do boxe, essa filosofia de vida, impregnou a minha atividade como homem e como artista de forma indelével.
MFL/ O facto de colecionar automóveis implica vertentes que, por assim o referir, sejam complementares; talvez mesmo cúmplices (?)É o prazer, a gula de colecionar e a sedução de os transfigurar em obra? com um dimensionamento trágico que de invisível, se converte – em certos casos – em evidente? Que implicações, que intencionalidades estão implícitas?
JL/ O automóvel é o objeto por excelência do século XX. Ele nasce no final do século XIX e faz uma viagem por todo o século XX e entra no século XXI em grande estilo. É o automóvel que faz a viagem do século. Entramos num Ford T em 1908 e saimos no Lamborghini Gallardo na atualidade. O automóvel foi a testemunha do século XX e o homem olhou para a história de dentro do automóvel. O automóvel é uma janela que percorre a história, desde os acontecimentos marcantes, até aos acontecimentos mais pequenos e episódios sem história. Vemos o mundo a mudar pela janela da viagem… O automóvel não é para mim uma paixão, é uma máquina do tempo. E a partir do momento que o identifico como testemunha do século, como testemunha do meu tempo, utilizo-o como superfície de inscrição.
MFL/ O ateliê é mega-organizado, impecável, insuperável, em termos de eficiência e sustentabilidade; tudo aparente (e tem) lugar de pertença, de funcionalidade, regimentando um processo que viaja da ideia configurada pelo João (intenção e concepção da obra), ganhando todas as fases de um processo de concretização e extravazando para o rigor do arquivo, da divulgação…propiciando nomeadamente condições para pesquisa e investigação, a quem queira… Poder-se-ia que quase tudo está previsto, controlado, dominado: poiésis, tekné, interpretatio…
JL/ o meu horror de ateliê é o ateliê do Francis Bacon. O meu espírito é ordenado e os desequilíbrios são pensados. O expressionismo é coordenado. O acaso é orquestrado. O atelier de Piet Mondrian é mais o meu estilo. Ainda não consegui alcançar esse desígnio mas “Less is More”. Este conceito é muito importante para mim e marca o meu território. Evito a entropia, o artista romântico perturbado, à espera de ser bafejado pelos deuses. Essa não é a minha postura em arte. A arte tem muito de transpiração e não espero a “inspiração”, e também não conheço o caminho do transcendente. Se ele existe na minha obra é poesia… Poesia que não provoquei, nem que chamei para estar presente. Acredito na poesia como invenção de caminho, então tudo é poesia na minha obra. Mas a minha obra é a minha vida… e é nesse sentido que poderei acrescentar algo ao universo da arte, que é o mesmo que dizer, acrescentar algo à memória do humano num determinado momento da sua presença na história. Esse é o contributo importante de um artista. Estar no seu tempo, a falar do seu tempo, a inventar novos caminhos. Eu sou o Blind Runner, aquele que não tem nada à sua frente e que inventa o caminho que vai pisar. Não me interessa a nostalgia do passado nem a fuga da ficção. Não quero colar-me ao passado, nem saltar sobre o presente, para o futuro. Não quero hiatos temporais. Eu só falo sobre as coisas que me interessam e que são as coisas do meu tempo. Revisito a história, mas sequestro-a para o presente. Escapo do futuro, porque está solto de “um presente”. O presente é o meu tempo e é a minha área de ação. Nada mais me interessa.
MFL/ Quantas personagens, quantos textos, quantas referências (que se me assemelham infindáveis), se plasmam como as mais premente, as que mais condicionam, orientam ou “dominam”? numa sabedoria que lhe seja muito pessoal, cruzando sistemas e paradigmas que se exigem entre si? ou exigem tréguas porque exercendo forças em distintas direções?
JL/ A minha obra é tudo isso. É a minha vida, como disse atrás. E a minha vida contém tudo isso. Não receio dizer que existe e mim um “Dr. Jekyll” e um “Mr Hyde”, um “Yin-Yang”… E é essa dualidade que cria as tensões que são forças contrárias que acionam a biela da locomotiva. Quando um lado folga, o outro pressiona. Acho que é a isso que se chama estar vivo. A biela é a força motriz da vida. É como o batimento cardíaco, que puxa e empurra. E não há tréguas… Quando se cede, morre-se. E há um sentido de comandante de barco, que vive os mais aprazíveis momentos em águas azul turquesa, para logo ser apanhado pelo mar de granito, cavado, cinzento escuro. Não há uma coisa sem a outra; e isso é um dos ensinamentos primordiais da vida.