Fotocopiar uma fotocopiadora ou A era da reprodutibilidade técnica no tempo da “ovelha Dolly”
João Louro, 1999
Em todas as artes existe uma parte física que não pode continuar a ser olhada nem tratada como outrora, que já não pode subtrair-se ao conhecimento e potência modernos.
Paul Valéry, “Piéces sur l’art. La conquête de l’ubiquité”
Por princípio a obra de arte sempre foi reprodutível. O que os homens tinham feito sempre foi limitado por homens. Tal imitação foi também exercitada por alunos para praticarem a arte, por mestres para divulgação das obras e, finalmente, por terceiros ávidos de lucro.
Walter Benjamim, “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica”
O homem é um animal que se interessa pelas imagens, uma vez que as reconhece enquanto tais.
Giorgio Agamben, “Image et mémoire”
É nos novos temas que estão prefiguradas as novas questões. Uma problemática que é inevitável e característica do “tempo a passar”.
Nossas novas questões lançadas, que respiramos e que poisam na trama de uma cultura existencial – as suas pessoas e ideias, “o” (esse) tempo, com a sua história de então, num equilíbrio qualquer entre as outras culturas -, está aquilo a que chamamos o “futuro”! (…)
Subsiste sempre o mistério, de como a história se livra dos seus aspetos mais moribundos. Suponho que é daí também que nascem as principais tensões, que se arrastam muito tempo; e muito mais a dissiparem-se.
A maioria dessas questões levam mais tempo a tomar um lugar estável, talvez até de lei, do que a vida inteira de um só homem. E quando ganham esse estatuto, demoram o mesmo tempo a abandoná-lo.
O homem vive então em comunidade, da confrontação: com o seu tempo, consigo, com as outras culturas, etc. É nessa coexistência instável, que cada cultura tenta sobreviver, sempre temendo a extinção. É também aí, onde são abertas as novas frentes de pensamento. Por tudo isto, nunca nada está realmente resolvido – e para o qual muito contribui a nossa precariedade.
Felizmente somos mortais.
Nessa confrontação e porque o fazemos em comunidade, vivemos mais confortáveis. Mas é ao sujeitarmo-nos a uma curiosidade (que acho natural e biológica), que aumentamos inevitavelmente, nesse antagonismo, a fragilidade e o horror perante o risco de extinção dessa comunidade (que tem sempre mecanismos de regulação… mas houve quem presenciasse a queda do Império Romano!). Nesse sentido, podemos esperar do futuro, o melhor e o pior. Como homens seremos mais aperfeiçoados, evoluídos, etc., a viver em comunidade, mas numa sucessão de crises.
Há portanto dois lados principais. O primeiro irremediável, na qual a curiosidade nos precipita; no outro lado, o labor meticuloso de cunhar o tempo, sempre de braço dado com a história e as “ideias-lei”, e em assegurar a rede de conexões e de comunicação geral.
Curiosamente, ambas as atividades que se desenvolvem em campos opostos, repelindo-se constantemente, têm no fundo um pacto fiel à sobrevivência dessa cultura onde se desenvolvem. Tudo o resto é petulância! E nesse sentido, quer a inteligência como a sensibilidade, ambos recortes genéticos inalienáveis (e se assim for!?), nos conduzem sem remédio, perante o perigo maior, expondo-nos à tarefa de sobreviver (como espécie, como comunidade), ao caos que nos ultrapassa e que cada tempo comporta.
Quando os fenómenos de exigência conceptual e visão de antecipação surgem, quase por acaso, sempre de surpresa, acabam naturalmente a confrontar definições sérias e a desqualificá-las. Acabam por se infiltrar noutras águas… e depois, ou falamos de engenharia e de diques, ou então de arte.
Nesse sentido a arte, à falta de palavra melhor, revela-se como uma forma de “mistério informativo”. E olhar uma obra de arte: é “estar projetado num tempo mais original, êxtase na abertura «epocal» do ritmo, que dá e retém”(1).
A máquina de reprodução contemporânea, por excelência, é a fotocopiadora. Da família do ready-made e da pop-art, trata-se de uma prática de reprodução para as massas, em regime de self-service. É uma verdadeira revolução… Benjamin falava da xilogravura e da litografia e demonstrava como o cinema e a reprodução da obra de arte iriam trazer repercussões retrospetivas importantes sobre a obra de arte. Quer dizer, nesse presente – o novo tempo da facilidade e uso da reprodução – colocariam novas questões. Mas ainda por cima, não era apenas ao presente (da arte e não só), mas também ao seu passado…! Teriam influência na perceção que temos no passado. A colocação deste dado é absolutamente novo ( e ao qual eu juntaria uma nova perceção do futuro: fazendo da história uma sucessão de ruturas, sem conexão umas com as outras).
Depois tenta diminuir este novo estatuto, que a revolução da cópia e da reprodução, perigosamente apetecível e político, alcançara. Fazia-o com um dado incontornável na altura: o aqui e agora! A existência única, a proximidade, a intimidade, etc, com o “facto” (a presença). Era isso que marcava o cunho da obra e a sua originalidade. Lançando a suspeita de que uma cópia, por melhor reprodução que fosse, estava sempre fora do seu tempo, e era apenas um “pastiche” (questão que hoje está longe da sua resolução).
Era nesse lugar – o aqui e agora -, que a história estava garantida e onde ela se cumpria.
E é nesse domínio global da autenticidade, onde a reprodutibilidade técnica está excluída pro natureza. A reprodução seria assim um anacronismo, onde isenta de qualquer valor (onde Benjamin quisesse até dizer responsabilidade), estava sempre “ao lado”.
À reprodução faltava-lhe o carácter testemunhal (esse aqui e agora) e isso contribuía definitivamente para não alcançar qualquer autoridade. E é por isso que há uma relação direta entre a ausência de aura numa obra, e a falta de autoridade dessa mesma obra. Estatuto que sé se adquire (?) pela presença.
Assim, a grande diferença entre uma obra e uma reprodução, é que a primeira estava no limite do seu tempo, “contribuía” para esse tempo; e a segunda era apenas uma consequência falhada, um momento sem contribuição possível ao seu tempo. (Esta é mais uma questão que não é pacífica e que tem hoje desenvolvimentos… mas parece não haver uma relação direta entre a reprodução e a falta de aura).
Curiosamente, quer a fotografia como o cinema, surgem como formas desqualificadas e precárias, daquilo que se poderia denominar à época, uma “arte no osso”; e que aos poucos, foi ganhando os seus crittérios na presença, no “aqui e agora”!
Isto percebeu-se claramente na últimas décadas, quando as imagens (fotografia e cinema), começaram a ser arrumadas e a andarem intimamente ligadas ao processo histórico. Tratam-se na realidade dos principais meios de produção de história, ganhando um estatuto social e solene: de veracidade popular, de crédito, de testemunho. Foi dessa forma que ganharam a autoridade que lhes faltava como meios jovens. Não creio que tivessem sido os festivais, as freiras ou a própria história de arte, a darem-lhes esse crédito. Trata-se na realidade de meios que canalizam recentes e genuínas expressões populares, onde a arte mobilizou o público em geral, tal como referia Benjamin, a arte só conseguirá resolver as novas tarefas de percepção, quando conseguir mobilizar as massas (2). Quer a fotografia como o cinema, cumprem essa função.
É importante, contudo, referir que também esta questão teve alguns desenvolvimentos contemporâneos. E, segundo julgo, a melhor maneira de abordar atualmente uma imagem é suspeitar profundamente dela, pois a velocidade e sucessão de imagens a que estamos expostos constantemente, numa sobreposição contínua, e ainda o desenvolvimento da publicidade, criou esta paisagem óbvia e dormente e uma recetividade pacífica e doméstica a que nos fomos habituando. Nunca como hoje temos perante cada imagem uma sensação de déjà vu e de impossibilidade – numa imagem reconhecem-se todas as outras! Esta paisagem trouxe, a meu ver, o maior recuo na evolução da percepção. Uma paisagem que não pode ser confundida com o local “sem-imagem”, a que Benjamin se referia: um refúgio de todas as imagens, naquilo que parece ser uma uma estimulante contradição onde a imagem recusa a sua própria finalidade, ser vista! E, pelo contrário, se oculta (e mais), se infiltra.
Neste processo natural de asfixia do “original”, há ainda um outro dado a acrescentar. Numa paisagem contemporânea opaca, produzida por essa sobre-exposição da imagem (que resulta no ecrã branco) – com profundas conotações políticas e interesses comerciais – surge um novo conceito, a cópia sm original: o “sampling” e o “clone”, são os seus mensageiros.
A partir de agora é impossível distinguir o original da cópia; e ainda o seu inverso, encontrar na cópia algo que pertencesse o original.
Há portanto uma natural decadência do padrão de autenticidade que se transformou noutra coisa. E como guia social estabelecido, o seu património defronta-se… Por esse motivo, noções como “original” ou “autêntico” (o autor que faz a obra) e assinatura ou direitos de autor (a mão que a autentica) debatem-se por um novo estatuto. E nessa perigosa tarefa apostam o seu próprio sentido natural e histórico.
Estas questões que estão sujeitas à maior das pressões, infligidas pelos novos acontecimentos avassaladores.
(1) Giorgio Agamben, “L’Homme sans contenu”.
(2) Walter Benjamin, “A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica”.
Photocopying a photocopier or the era of technical reproducibility in the time of Dolly the sheep
In all arts there is a phisycal aspect which cannot continue to be seen nor dealt with as before, which cannot be withdrawn from modern knowledge and potency.
Paul Valéry “Pieces sur l’art. La conguête de l’ubiquité”.
In principle all art has always been reproducible. That which Man had made could be imitated by men. This imitation was also carried out by students in order topractice art, by masters in order to divulge the works, and finally, by third parties greedy for profit.
Walter Benjamin, “The Work of Art in the Era of Technical Reproducibility”.
Man is an animal who is interested in images, as he recognizes them as such.
Giorgio Agamben, “Image et mémoire”
It is the new themes that the new issues are raised. A problematic which is inevitable and characteristic to the “passing of time”.
In this new issues raised, which we breathe and which are set out on the mesh of an existencial culture – of their people and ideas, “that” (this) time, with its history from then on, within an equilibrium between the other cultures – there is that which we call the “future”.
The mystery always remains as to how history frees itself of its more moribund aspects. I suppose that it is from this also that are born the main tensions, which take a long time to become what they are; and much longer to dissipate.
Most of these issues take longer than the whole of a man’s lifetime to take up a stable, perhaps even lawful, position. And when they achieve this statues, they take the same amount of time to bandon it. Man thus live in community, of confrontation: with his time, with himself, with other cultures, etc. It is within this unstable coexistence which each culture tries to survive, always in fear of its extinction. An it is also here where there is the opening of the new front lines of thought. Due to all this, nothing is ever truly resolved, and our precarious nature has contributed greatly towards this. Hopefully we may die.
In this confrontation, and because we carry it out in community, we live more comfortably. But it is subjectiong ourselves to a curiosity (which I think is natural and biological), that we inevitably increase the frailty and the horror when faced with the extinction, within this antagonism, of this community (which always has mechanisms of regulation… But there have been those who witnessed the fall of the Roman Empire.) In this sense we may expect the best and the worst from the future. As men we will be more perfected, evolved, etc., living in community, but within a succession of crisis. There are, therefore, two principal aspects. The first is irremediable, into which we are hurled by curiosity; on the other hand there is the meticulous work of marking out time, always arm in arm with history and with the “law-ideas”, and with guaranteeing the network of connections and of general communication.
Curiously, both the activities which take place in opposing fields, constantly repelling each other, have, deep down, a faithful pact in relation to that culture in which they develop. All the rest is petulance! And in this sense both intelligence and sensitivity, both of which are inalienable genetic aspects (and what if this were true?) forcibly lead us, in the face of the greater danger, exposing us to the task of surviving (as a species. as a community), to the chaos which goes beyond us and which is included within each time.