AUTO-ESTRADA E SILÊNCIO SATURADO

AUTO-ESTRADA E SILÊNCIO SATURADO
January 24, 2014 João Louro
Maria de Fátima Lambert
2012
in DARDO magazine 

 

Auto-estrada e Silêncio Saturado

 

“…eu que combato aqui em baixo, quando voltas?”

“…The world sinks:
Hang on, it’ll leave you
alone in the sun.
You write:
The ink grew less
The sea increases…”

 

PREVIEW

Os ícones e mitos da sociedade atual questionam a sua própria mediaticidade, relativamente ao que respeita a sua atitude pública, as suas ideologias, estereótipos e imagens. Esse é o espaço de alguns artistas, entre os quais se destaca João Louro. Atendendo a uma obra vasta que se desenvolve desde inícios dos anos noventa, assinalam-se aqui séries e projetos conciliadores de uma intenção e demonstrativos de um pensamento estruturado a partir de convicções artísticas e culturais motivado por decisões estéticas, sociológicas, antropológicas e, muito em particular, conformadas pela filosofia da linguagem e patrimónios poético/literário e cinematográfico.

Um dos denominadores comuns, constatável em diferentes séries produzidas por João Luro será a “auto-estrada” que consiste em propósitos e funcionalidades específicas. Converteu-se em algo amado e odiado, imprescindível e mítico. Pela sua implantação, em termos urbanísticos relaciona-se a “afetos” societários, visando desenvolvimentos locais, regionais, nacionais e internacionais, explicitando estratégias socio-políticas e ideológicas, portanto. Numa outra perspetiva, estabeleceu-se uma mitificação e mesmo “Olimpo” das auto-estradas, no qual se inserem as ideias e ações de João Louro. No cinema americano, mas também noutras filmografias, caso de certos diretores europeus e orientais, as auto-estradas são personagens, protagonistas, atributos ou objetos irreversíveis, manifestando um poder e sedução polissémico. Nelas, estradas e auto-estradas, factos de existência nascem e morrem, decisões clarificam-se, sentimentos constroem-se ou dissolvem-se, enfim são casos de irreversibilidade, onde a morte real edificou mitos inolvidáveis: James Dean, Pollock, Albert Camus… numa lista infindável de anónimos “não-mediáticos”, propagando dor, incompreensão e revolta. E nascendo mitos… que o tempo acumula e acarinha.

As auto-estradas, em sua justificação, implicam automóveis, legitimando a razoabilidade de serem, pessoas e animais (donde também os cães), não devem circular nas auto-estradas por si mesmos, mas devidamente escudados em seus “casulos” (subversão): Highway, 1994, onde se lê:

 

ERFAHRUNG / (fazer experiências) / Weimar;

GE-STELL / im-pozione /NADA;

amor (dionísico) / SUB-FACTOS;

DIFERENTE /Posthuman / DASEIN”

 

Nos trajetos em auto-estrada, as placas sucedem-se desaparecendo de acordo com a velocidade a que os automóveis são dirigidos. Quando se desenrola uma viagem, suficientemente longa, interiorizam-se essas visões consecutivas. Atendendo à frequência e regularidade com que essas rotas se repetem, gera-se a habituação visual às sinaléticas viárias. A viagem/estrada vai-se interiorizando, em tal percentualidade de assimilação que as placas se convertem em adornos familiares. Não é mais questão de “Código de Trânsito”, já assinalara Paulo Herkenhoff no texto para o catálogo Blind Runner (CCB/Lisboa, 2004), embora numa outra aceção. Eu acrescentaria que as placas – ícones e palavras – adquirem uma dimensão estética, sustentam e velam afetos/perceptos visuais, sem que seja demasiado necessário olhá-las para rececionar a informação (pois esta está dominada/possuída). Assim, João Louro concretizou o sonho de um viajante motorizado recorrente, ao conceber os seus Dead Ends ao mesmo tempo que os Land Ends.

Nas várias instalações realizadas em equipamentos museológicos portugueses e internacionais, a razão de serem em interior confere-lhes uma potencialidade psíquica e estética específicas: “La pensée et l’erreur” (Fundació Joan Miro, Barcelona, 2001) incide sobre tópicos relevantes na construção do pensamento filosófico, reunindo autores significativos:

Maquiavel, Baltasar Gracián, Wittgenstein, Rilke, Trakl, Celan, Paul Valéry, Thomas Mann, Mallarmé, Baudelaire (entre outros indícios), assim como citações da Divina Comédia (Dante): “Negare l’esperienza di retro al sol, del mondo senza gente…” Curioso é o facto de “escrever” as frases e nomes em distintos idiomas, o que propicia uma Babel de pensamento peculiar e, simultaneamente, de certa aceção de “obra aberta” (d’après Umberto Eco).

Se os Dead Ends demonstram um espírito analítico-crítico (que induz à visualização “mental” do espectador, através de estímulos literários e filosóficos, pretendendo na senda de Nietzsche “curar a doença de Platão”/”Guérir de la maladie de Platon”, os Land Ends pautam-se por uma capacidade de síntese significativa – também proporcionada por idênticos impulsos intelectuais, mas convergentes e quase “meta-seletivos”. Neles, concentram-se, pois, referências “depuradas” e precisas. Exatamente esse Nietzsche (não somente de Origem da Tragédia ou Gaia Ciência mas, e sobretudo, dos Ditirambos, 1889), anunciado situar-se a 3 750km no Land’s End #02 (2002), ao qual pode contrapor-se o Land’s End #01 (2002), que nos suscita indecisão quanto ao percurso a cumprir: hei-se seguir para encontrar com Sade (6 500km), Wittgenstein (6 250km), W. Benjamin (6 100km), Beckett (5 100km) ou Bataille ( 4 200km)…

Consoante as afinidades eletivas (Goethe) percorre-se mentalmente ao encontro de: Ditirambos de Diónisos, Filosofia na Alcova, Lecciones y conversaciones sobre estética, psicologia y creencia religiosa, Das Kunswerk im Zeitalter seiner technischen Reproduziertbarkeit, Fim de Partida ou Haine de la Poèsie… Todos estes autores (quanto tantos outros), de uma forma ou outra, culminam em algum grau de solidão, em agudeza de na humanidade ver a identidade pessoal e vice-versa… propiciando essa estética de silêncio saturado.

João Louro estabeleceu um glossário visual, codificado para si e para outrem, que acumula termos num certo espírito enciclopedista. Insere nomes e frases, revelando a sua cultura e erudição, ciente de que: “…um código que define o uso das cores como cânon rodoviário: placas azuis com letras brancas se referem a zonas de interesse do tráfego, tais como pontes, viadutos, etc.” (Paulo Herkenhoff in Blind Runner)

Nos seus projetos, suscetíveis de se categorizarem enquanto Arte Pública, destacam-se os implementados em Toulouse (França) e em Lisboa – diante do cinema São Jorge, na Avenida da Liberdade. Neste caso, gerou-se uma situação assaz curiosa, oportuna de mencionar: tendo sido a peça de Louro colocada e tendo permanecido durante período estipulado, a peça foi retirada pelos serviços camarários e transportada para um depósito. Perante o “desaparecimento” da obra, foram desenvolvidas diligências para a localizar, obtendo a informação do sucedido. Tinha sido “catalogada” como material de sinalização de uma exposição que acabara. Não tendo sido “reclamada”, foi levada para o lixo. Posteriormente, houve o reconhecimento, por parte dos responsáveis nos serviços, que se tratava, afinal, de obra de arte. Daí, poderia surgir situação complexa quanto às condições materiais da peça… implicações e consequências dos procedimentos realizados…

Em Toulouse, a sinalética foi inserida no espaço público, no âmbito do evento Marathon de Mots (2005), sendo devidamente rececionada e interpretada como tal: uma intervenção, talvez “performance de matéria (objetual e) mental”, em espaço público (urbano), em contexto de arte pública. A “capital literária” escolhida, aquando dessa programação e eventos, forma precisamente Lisboa. A cidade de Toulouse esteve mobilizada e ciente das atividades que estavam programadas, donde a receção e reconhecimento de seu sentido: Dead End #03 (2005) foi uma das peças exposta na cidade. A dimensão da placa, contendo inscrições provocatórias, à qual não se escapa facilmente, obrigando o condutor parado no semáforo ou o transeunte que aguarda “sinal verde” a questionarem, a refletirem: “Le premier homme”, “The Sun made me the morder”, “Blinding Rain”, “Néant/Forgive/Regret”, “Fin dês temps sans fin”…

A abordagem, em âmbito de intervenção, vide Arte Pública, parece-me muito significativa e capaz de ser transladada para arquitetura interior. Ou seja, os elementos de sinalética urbana e rodoviária entram nos museus e galerias, promovendo um fora que está dentro, sem anular identidades de espaços ou atributos ou peças em si. Formatam também uma pragmática da escrita (para além da semântica e da sintaxe) que lhes é singular em parâmetros divergentes que adquirem propriedades cúmplices e geram intersubjetividades entre imagética, escritas e mitologias autorais.

CHAPTER ONE

Ateliê+cinema | cães+automóveis são binómios que atravessam a obra de João Louro.

O ateliê ocupa toda a extensão de uma antiga garagem de prédio, sucedendo-se divisões que respondem ao exercício de tarefas específicas, numa concentração de funcionalidades.

O espaço foi reformulado, através de uma arquitetura adaptada pelo artista, pretendendo corresponder às exigências impostas para a criação das suas obras. Manifesta um sentido de perfetibilidade e depuração que acompanha todas as fases, da conceção à sua concretização, estendendo-se até mesmo ao “depois” da obra finalizada – quer em termos de registo e arquivo, quer na resposta a qualquer restauro necessário. Etapas significando prolongamento, em adequação ao trajeto em horizontalidade no ateliê, chamando o pensamento para a questão da duração. Lembre-se da obra The Pursuit of Happiness (Automobile tyre print) – 2011, linha configurada a partir das marcas de pneu pintado, cujo título remete para a obra de Rauschenberg, datada de 1953.

O cinema supõe percorrer, sendo pensado compulsivamente, sob distintos auspícios e intenções, por João Louro, desde há décadas. A irreversibilidade cinematográfica, na passagem e em movimento, é congelada em imagens, decididas pelo artista que assim se apropria de ações, momentos ou decorrências, transpondo-os enquanto Blind Images.

Os cães acompanham-no em atividades quotidianas, levando-os até galerias, onde se confrontam com a arte contemporânea. Igualmente ocorrem caminhadas (leia-se extensão e duração) cujo objetivo não passa na mente dos animais confiantes.

“O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo” – Álvaro de Campos.
“Um automóvel rugidor, que parece correr sobre a metralha, é mais belo do que a Vitória de Samotrácia” – F.T.Marinetti.

Os automóveis na obra de João Louro servem propósitos complementares. Na sua condição de peças de coleção, ficam estacionados em local próprio, numa das amplas divisões do mega-ateliê; quando convertidos em obras residem em trânsito numa e outra exposição, subvertendo o impulso da velocidade interessada para a deslocação entre pontos: Rimbaud Spell – 2007, Runway Car Crashed e Looking for Alice – 2000 ou The Jewel – 2005.

O enfoque conceptual no espaço | local e no tempo | duração concilia tópicos que poderiam ser entendidos como antagónicos.  A velocidade a cumprir, a exceder, subjacente à intencionalidade da instalação apresentada em Grand Prix (Setembro/Outubro 2011 – Galeria Fernando Santos/Prt): “If everything seems under control you’re just not going fast enough” – (Mario Andretti dixit). Essa peça consiste na ausência do automóvel, presentificando os rails de uma auto-estrada, danificados por um acidente suponível:

“Esta é uma exposição sobre estrada. E curvas. É sobre a meta e onde tudo é velocidade neste tempo imóvel.

E o automóvel de corrida que vai cortar a meta é onde eu estou, sozinho, ao volante, nas 24 horas de Le Mans.

E olho para o lado. E nesse micro-segundo descubro o acidente inicial e quero ser o lado de fora. Quero ser a berma, o cão vadio ou o vagabundo e ir para o sítio onde a velocidade abranda e o tempo avança.”

A celebração crítica sobre a cultura norte-americana é visível e invisível no caso de João  Louro. Isto é, presentificada através de ícones publicitários” – marcas, logos e produtos – Le Lapin Agile (2010) – coelhinhos transformados a partir da Playboy que dialogam com o nome do Café de Montmartre…; Les Paradis Artificiels (Ecstasy Sample – 2008) – Barbie, Nivea, Lucky Strike, CNN… encontram Charles Baudelaire e sucedâneos alucinogéneos…

Numa aceção quase sublime, no video The Book of the Vampires (2001), confrontamo-nos à sobreposição de logos e íconos (desde Woolmark, Prada, Mc Donalds… até BMW e Porsche) na película/filme de Murnau, Nosferatu (1922). No futuro, segundo comenta João Louro, deparamo-nos com a eventualidade da publicidade ocupar tudo: imagens e, sobretudo, ideias – capacidade de raciocinar, de pensar por si mesmo. Por outro lado, a [aparente] ausência de marcas e logos, prolonga-se na instalação Label #2 (2010) onde, quase imperceptivelmente, se inscrevem “Sin”, “Virtue”, “Egoism”, “New York”, “Milano”.

Da translucidez das palavras até à sua não presença, chega-se à absoluta inexistência, evidenciada assim a geometria rigorosa em Malaparte Hause (2010). Também no caso desta titulação se abre mais do que uma indexação: por um lado Curzio Malaparte, jornalista italiano e a Casa Malaparte, Capri (em Capo Massullo e construída pelo arquiteto Adalberto Libera e que Malaparte terá rejeitado…) que foi local de filmagem para Le Mépris de J.L. Godard…

A continuidade morfológica de massas monocramáticas, adequando-se à arquitetura, foi um dos conceitos que o artista privilegiou, na concepção da mostra individual realizada no Centro Cultural de Bragança (2011). Como se o silêncio de cores e formas fosse resultante do excesso de sobreposições e elementos visuais… a saturação que se esvai no rigor harmonioso e na proporção organizada do nada.

A consciência e a capacidade de discernir sobre o essencial revelam-se na seleção de referências introduzidas nas peças; sendo evidente através das requintadas citações de escritores como William Bourroughs, Jack Kerouac, depurando uma tradição marginal e errante, talvez mais do que nómada. De mencionar, autores e poetas “históricos” tanto quanto pseudo-malditos… Melville, Rimbaud Baudelaire… toda uma plêiade que, porventura, argumentará razões num qualquer teatro de Dante – Paradiso | Swiss Made (2001) ou Inferno [Paris, London, Milano e NY] (sequente paradigma Diablo – 2004). Não será por acaso que João Louro escreveu em néon, com caligrafia cuidada essas ideias que são palavras.