JOÃO LOURO, O CARTÓGRAFO DE CARTOGRAFIAS

JOÃO LOURO, O CARTÓGRAFO DE CARTOGRAFIAS
June 20, 2022 João Louro
Paulo Herkenhoff
2022
in Minha Pátria é Minha Língua. Interseções luso-brasileiras

João Louro, o cartógrafo de cartografias

“Eu recordo um dia que falávamos sobre esta obra, no meu ateliê, e eu ia dizendo que os mais complexos e intricados seriam os pensadores mais distantes, que exigiam um esforço de endurance maior. E você, Paulo, respondeu: ‘Você sabe, a Terra é redonda, o que significa que o ponto mais distante de nós é o que está mais próximo de nós. Nas nossas costas está o ponto mais distante em linha reta de nós’. E por isso ficou para mim, sempre, a lei de que nós somos o nosso ponto distância”, rememora João Louro (1).

João Louro é um artista-filósofo, não por conta de mero “citacionismo” ou da ilustração de ideias de pensadores, mas porque sua arte se faz e se pensa filosoficamente. Fazer arte é pensar. O inconsciente geográfico de Louro imagina o mundo como uma rede de lugares com história, tomados pela razão política da linguagem. As três instâncias cartográficas de João Louro a serem abordadas são os mapas, as placas de trânsito e a Enciclopédia de Denis Diderot e Jean d’Alembert. João Louro, o desestabilizador das escrituras do mundo, conduz o leitor através de entrecruzamentos e colisões, convergências e desvios, atalhos e confluências, extensões e distâncias. Nesse percurso, a cartografia se apresenta na forma de escritura verbo-visual da Gaia habitada. A ocupação com eixo problemático inicia este pequeno ensaio: (I) o debate sobre a presença humana na superfície terrestre trazido pelo geógrafo Milton Santos e (II) as relações de poder por detrás da ideia de orientação.

Em A natureza do espaço: técnica e tempo. Razão e emoção (1996), Santos aborda o espaço geográfico como um conjunto indissociável de sistemas de objetos e de sistemas de ações (2). Seu foco é a ideia de totalidade na geografia, interpretada de acordo com duas versões teóricas: (i) “a vontade de tratar o fato geográfico como um ‘fato social total’, à maneira de M. Mauss; e (ii) a ideia de totalidade do mundo que, entre outras formas, encontra como solução epistemológica o apelo à noção de ‘sistema-mundo’ por F.Braudel” (3). Na infra- citada obra Land’s End, João Louro valoriza Georges Bataille, que por sua vez teve em Mauss um ponto de referência. Mas Louro também leva em conta a globalização em seus atos plásticos que abordam planisférios, como em o Mapa #02 (2015, col. Museu de Arte do Rio, doação do artista).

Obra de referência para o conhecimento da língua portuguesa, o Elucidário (1798) (4) de Joaquim de Santa Rosa de Viterbo não registrou o termo “orientação”, tão caro à cartografia de João Louro. O étimo “orientação” provém do latim “oriri”, verbo que significa levantar-se, tomar sua origem. A palavra “oriens”, que deu origem a “Oriente”, se referia ao levantar do sol; em seguida, passa a indicar a direção de se levantar; e, por fim, descreve as terras que se encontravam nessa direção. Explica o Dicionário Houaiss que a palavra “orientação” deriva de “orientar” mais o sufixo “ção”; “orientar”, por sua vez, vem de “oriente” mais o sufixo “ar”, por influxo do francês “orienter” (1680). Quanto à palavra “Oriente”, ainda de acordo com o mesmo dicionário, ela vem do latim “oriens, entis”, designando o oriente, parte do céu em que nasce o sol. Segundo o Dictionnaire de l’Académie Française, a orientação é a determinação dos pontos cardeais a partir do lugar onde o indivíduo se encontre. Interessa aos mapas de Louro compreender que a orientação implica em variabilidade temporal ou espacial dos índices, como em Mundo ou Land’s End.

Depois da etimologia de orientação, cabe reparar que, a partir do Renascimento, a moderna cartografia europeia passou a adotar a orientação de seus mapas a uma posição empírica mais favorável à sua navegação. Em princípio, a orientação cartográfica mais comum vigente ainda hoje leva em conta o melhor serviço ao se posicionar a partir da Europa em relação às navegações no caminho para o extremo Oriente, i.e., a Ásia. Essa origem eurocêntrica está na base da crítica da cartografia de João Louro à pretensão da Europa de ser centro e ponto de partida do conhecimento humano. Algumas cartas de Louro esculacham o eurocentrismo histórico ao desordenar a lógica da orientação em trabalhos como Mapa #01.

 

Deambulações sobre mapas

No centro de uma sala do Palazzo Loredan, na Bienal de Veneza de 2015, João Louro instalou uma imensa tela de 4 × 4 m muito amarrotada, “como se fosse um  velho  mapa  negro  tombado”.5   Um  mapa  semelhante  –  o  Mapa  #01  (col. Museu de Arte do Rio, doação do artista) – enuncia a cartografia entrópica, assombrada pelos vincos aleatórios e pelas dobraduras desobedientes da lógica da malha, que organizou singularmente muito da cartografia a partir dos portulanos do Renascimento e o espaço da pintura moderna no século XX como malha (ou grid, em inglês). O amarrotado significante, um valor agregado, desemboca na cena de arruinamento do mapa indecifrável. A homogeneização da sociedade industrial se generaliza, segundo Georges Bataille, através do “valor produtivo”, com sua “medida comum, fundada no dinheiro como forma fixa, são as coisas possuídas” (6). No limite do “incartografável”, ocorre uma relação de assimetria entre esse mapeamento e o clássico mapa esfarrapado de Jorge Luis Borges (7), a alegoria de um racionalismo delirante, em seu rigor, e derrocado, em sua vontade totalitária de absoluto domínio do espaço. Borges argumenta que o todo não se converte em cartografia. O escritor definiu a inutilidade da cartografia desmesurada e o excessivo rigor da ciência, no extremo em que mapa e território coincidiam em dimensões. O Mapa jaz, abandonado às inclemências do tempo e aos percalços de sua vivência improdutiva. Hoje, escreve Borges, “en los Desiertos del Oeste perduran despedazadas Ruinas del Mapa, habitadas por Animales y por Mendigos; en todo el País no hay otra reliquia de las Disciplinas Geográficas”. Impiedosos, Borges e Louro friccionam o hipercontrole do Estado sobre seus territórios e, consequentemente, para o artista do século XXI, sobre os cidadãos e os corpos (8). Esse mapa amarrotado de João Louro aponta para os trabalhos de Georges Bataille sobre o corpo (como O erotismo) e para a biopolítica de Michel Foucault: é uma carta geográfica imprestável ao serviço fornecido pelo panóptico onividente de Thomas Hobbes, abordado por Foucault em Vigiar e punir.

O regime lógico de João Louro observa, no mapa vincado, que partes muito distantes se conectam, como se reorganizando o mundo e tornando-o uno, pois o amarrotar encurta as distâncias (9). O mapa fantasmal age contra a insularidade das ilhas, provoca a fratura de impérios e acelera o contágio das culturas. A ação de amassar – o ato sísmico do artista – perturba o eurocentrismo das cartas geográficas modernas. A ação de amarrotar o monocromo preto – o território anterior ao fiat lux – é o trabalho de fazer aflorar alguma coisa – fantasmas – no contexto de gênese do poder.

O projeto de João Louro propõe o quase nada. A tela amarrotada é uma “quase escultura”, posto que o verbo “to crease”(amarrotar) está na Verb List (1967-1968) que, para Richard Serra, perfaz a escultura (10). Amassar, para Louro, é introduzir um devir significante para a geometria da terra sobre os processos de territorialização e acomodações violentas das placas tectônicas. O português médio traz a memória coletiva do terremoto que assolou Lisboa no ano de 1755, seguido de um tsunami e um incêndio que lambeu muitos quar- teirões da capital do Império Português. O signo material do Mapa #01 a uma plasticidade maleável necessária (talvez mais que resultante) para se adaptar a um movimento sísmico de grandes proporções.

Evocando a dicotomia entre pintura e escultura, a superfície amassada da obra de João Louro, como seus ressaltos orográficos quase irrelevantes, constitui diferenças que já enunciariam relevos sutis à fenomenologia do tato. A operação ocorre no interior mesmo da linha de fronteira, isto é, na fratura do “vincamento”, mas é só o vir-a-ser do espaço em jogo “desnomeador”. Seu momentum situa-se entre o estado pré-significante e um regime de signos convencionado pela escritura política da Terra. Séculos de investimento no aperfeiçoamento da cartografia do mundo foram reduzidos em poucos minutos por João Louro ao informe, de acordo com o conceito de Georges Bataille. As regiões entre dobras e vincos poderiam ser aproximadas dos plateaux de Deleuze e Guattari, que estabelecem conexão entre rizoma e mapa – o rizoma é cartografia, e não decalque; é mapa, e não calco (11). O mapa amarrotado grava o agravamento da desterritorialização e, no entanto, já sem bússola e sem lugar. Bordeja-se a inexatidão em deformações anárquicas e sismos do acaso. Un Coup de dés jamais n’abolira le hasard, escreveu Mallarmé.

Em comparação à produção de João Louro, a dobradura “errada” do Folded Map (1967) de Robert Smithson recupera o gesto desajeitado de uso de mapas no cotidiano, contra a lógica da malha industrial de vincos. Sua dobradura não se confunde com o amarrotado de Louro, porque Smithson dobra “errado”, desobedece aos vincos originais do mapa e desconstrói a lógica de organização da carta geográfica para problematizar a representação cartográfica do site e sua dimensão reduzida ao design gráfico. Marie-Ange Brayer analisa o Folded Map como “involução do limite”, pois as marcas das dobras seriam vestígios de coordenadas ou confins da lacuna (12). Pode-se admitir, ademais, que o trabalho de Louro incide na categoria do “mapa lacunar” e que enfrenta a “impossível taxonomia do lugar” em parâmetros analíticos desenvolvidos por Brayer. Ele propõe um olhar em errância, entre os acontecimentos fractais, as dobras tectônicas e os confins das lacunas, sem nome e sem fonética, e, ali, todo acidente no mapa é um non-site apenas como traço geológico mínimo. Essa mesma economia sem acúmulo está no pensamento de Louro que se reduz a reunir pregas, refolho e rugas (13).

Os mapas amarrotados de João Louro giram na direção do Globus (1968) de Claudio Parmiggiani, que desinfla um globo terrestre de plástico, amassa-o, para enfiá-lo num pote transparente de preservação de alimento. Os mapas conspurcados de Louro são sintoma da violência real que permeia o sistema-mundo totalizado e global. Sua intencionalidade é implantar um processo de desorientação colidente, porém compatível com as diásporas, os êxodos, os exílios, os genocídios, a escravização, que deslocam multidões compelidas a direções que elas próprias desconhecem.

Os vincos, dobras, pregas, rugas, amassados, amarrotados infligidos por João Louro sobre a representação cartográfica da Terra também aludem às guerras e a seus destroços materiais e humanos – como não pensar aqui nas suítes de gravuras Les Grandes Misères de la guerre (1633), de Jacque Callot, e Los desastres de la guerra (1810-1815), de Francisco Goya?

 

Mapa esférico ou Mapa embolado

Um mapa esférico, um mapa embolado, uma pelota ou um pseudoglobo acaba sendo o campo de elaboração do sujeito, ser sempre esférico e inacabado. O lexicógrafo português Caldas Aulete apresenta alguns sentidos para o étimo “embolar”, o verbo claro e preciso com o qual João Louro produz sua obra Mundo (2017, tela impressa e amarrotada, com suporte metálico, 12 × 18 × 10 cm): “cair com estrondo, rolando como uma bola”; “encaroçar, embolotar”; “aplicar bolas nas pontas dos chifres de (bovinos), para que não firam” (14).

Para João Louro, “embolotar um mapa” é criar um globo, afirmar a esfericidade do planeta, moldar o sujeito. A pequena esfera Mundo (2017) de João Louro é da família da obra A diferença entre o círculo e a esfera é o peso (1978), de Cildo Meireles, que, ao amassar um círculo recortado em papel na forma de uma bola, produz uma esfera, o sólido platônico. Louro e Meireles tiram o desenho (um círculo e um mapa respectivamente) de sua “planaridade” e da questão de transitoriedade do traço, contemplação e intimidade para contaminá-lo com as tensões do mundo. O gesto de João Louro de amassar o mapa bidimensional converte a Terra em sua própria esfericidade de planeta. Premonitoriamente, o artista antecipou a discussão obscurantista que aflige o mundo em termos gerais e o Brasil em particular.

Ademais, a cartografia imaginária de João Louro subverte as noções da linha reta assentadas pela geometria nos portulanos que tanto auxiliaram os navegantes no século XV. Ainda, na contorção do suporte, as linhas geográficas – portulanos, meridianos, paralelos, fronteiras – se redobram e tocam no ponto onde estariam as mais longas distâncias no mapa em dimensão planar. Essa é uma alegoria da necessidade de entendimento, de aceitar as diferenças, malgrado João Louro ser cético a respeito de toda forma de idealismo no que se refere à necessária harmonia no convívio entre as diferenças.

Leitor do fenomenólogo Peter Sloterdijk, João Louro celebra ter em sua biblioteca, “num espaço (quase próprio!), o Peter Sloterdijk – ele ensinou-me a olhar o ‘esférico’ com outros olhos. O seu livro Bulles – Sphères (1998) é uma ajuda preciosa para isso. Depois escreveu o Globes (1999) e terminou a trilogia com Écumes (2004)” (15). Sloterdijk se propôs a elaborar nada menos do que uma história filosófica da humanidade pelo prisma de uma forma fundamental – a história – e de três de suas declinações: a microesferologia, a macroesferologia e a esferologia plural, ou, respectivamente, bolhas, globos e espumas.

Na justaposição da problemática da “orientação” às formas dimensionais da geo-graphein, já se viu que o modelo cartográfico bidimensional “mapa” é eurocêntrico. Consequentemente, também o “atlas” (que é uma reunião de mapas) se deixa afetar pelo eurocentrismo, seja o Atlas de Gerhard Richter, sejam exposições que se organizam como um atlas sem a devida atenção para o problema político. Exclui-se aqui o modelo do Atlas Mnemosyne, de Aby Warburg, que se abre para outras culturas na busca da Nachleben, a sobrevivência da forma, e dos Pathosformeln. A mostra Atlas, como levar o mundo nas costas? (2010), com curadoria de Georges Didi-Huberman, no Museu Reina Sofía, em Madrid, parte do bom princípio de Mnemosyne de Warburg e interpela o espectador a partir de Atlas, a figura mitológica grega.

O pensamento esférico abandona o mapa como documento dimensional e opta pelo globo como representação mais ética do mundo. O pensamento es- férico trata a Terra como uma esfera, que, segundo Platão, é o sólido perfeito, pois todos os pontos de sua superfície estão à mesma distância do centro (16). Não sobra, então, lugar para o etnocentrismo, o eurocentrismo e outras formas de hierarquização das sociedades e das pessoas em função da paisagem social em que habitam. No globo terrestre não há distorções de dimensão e de forma dos países por demandas políticas e gráficas do mapa.

João Louro compõe o naipe de artistas plásticos que operam em distintas chaves com o pensamento esférico desenvolvido na arquitetura de Étienne-Louis Boullée (o projeto para o cenotáfio esférico de Newton na forma parlante de uma esfera celeste para homenagear o físico e astrônomo) (17) e das cúpulas geodésicas de Buckminster Fuller. Com relação à arte brasileira, a bolota Mundo de João Louro dialoga com o pensamento esférico em várias gerações de artistas: Cildo Meireles, Waltercio Caldas, Hilal Sami Hilal, Delson Uchôa, André Severo, Armando Queiroz, Adriana Eu, Michel Zózimo, Marina Ca- margo, Leandro Machado e outros (18). É que árvores, filósofos mortos e vivos, personagens de livros diferentes e obras de arte conversam entre si.

 

Mapas cegos

Não se sabe o nome de nenhum personagem em Ensaio sobre a cegueira. Na epidemia que acomete as pessoas ao longo do livro, o motorista deixa de enxergar repentinamente (19). Numa licença poética para fazer uma ficção, agora só resta ao condutor utilizar certos mapas de João Louro para se orientar.

Quando o conto “El Aleph” ficou pronto, o autor estava às vésperas de atingir a cegueira total por uma doença degenerativa irreversível (20). O texto é um relato cartográfico que localiza no porão de um casarão de Buenos Aires, um ponto em que se abria para o conhecimento do espaço que abarca toda a realidade do universo. O casarão estava prestes a ser demolido. Borges, talvez o escritor mais citado pela crítica de artes visuais, era cego. Talvez só restasse a Borges certos mapas de João Louro para se orientar no território de El libro de arena. Talvez só sobre à visão do espectador ler os signos ausentes nos Empty Maps de João Louro. No ensaio La struttura assente, Umberto Eco se propõe a “definir o valor semântico de um termo pela diferença do espaço semântico ocupado pelo outro termo” (21).

Os Empty Maps dialogam agora com o Cildo Meireles do Espelho cego (1970), cujo vidro especular foi substituído por uma massa mole. O público molda a matéria, de plasticidade dócil, podendo produzir uma imagem tátil do sujeito na superfície do objeto, a partir da própria carnalidade viscosa (22) da superfície e da materialidade do espelho. Espelho cego aponta para a relação entre os sentidos e a formulação do sujeito. O objeto funciona como esboço, momento de formação da imagem sob a dialética regressiva da formação narcísica do próprio rosto. A superfície, que o olhar dos videntes vê como superfície informe, será o campo de elaboração do sujeito, este ser sempre inacabado.

Na civilização do verbo, o sem nome aflige. João Louro é o cartógrafo de Ensaio sobre a cegueira, do achado de “El Aleph” e dos vazios semânticos de La struttura assente a desenhar mapas utilíssimos (como o Empty Map #03) (23) sobre o vazio, o vácuo, o indizível, a treva, o silêncio da surdez absoluta, o duplo da visão das letras pelo analfabeto, a escuridão atrás da alvura do monocromo branco (in)desenhado; tudo parece estar mapeado nesses jogos cartográficos linguístico-sensoriais: mapa-múndi / mapa mudo / mapa cego / mapa ágrafo / mapa afonético / mapa in-háptico / mapa antibraille / mapa de luz / mapa iluminista, como a Carta sobre os cegos para uso daqueles que veem (1749), de Diderot, escrita dois séculos antes do ano em que o maior homem cego do século XX, Jorge Luis Borges, parou de enxergar.

A estrutura cartográfica ausente de certos mapas de João Louro (como em Empty Map #11) (24) é uma alegoria do poder sobre um território com bases no obscurantismo, na omissão de informações aos cidadãos pelos membros do aparelho do Estado. Ocorre o mesmo no projeto político de Louro, o resultado é um olhar solidário para a experiência de deriva, errância, diáspora, exílio, desterritorialização dos sujeitos modernos. Empty Map #11 é o cenário atualizado do homo sacer, de homens e mulheres sem-terra ou sem-teto mundo afora. Se a escultura de Amílcar de Castro já se fazia com apenas dois verbos (cortar e dobrar), e se a escultura de Richard Serra se faz com dezenas de verbos (e.g., enrolar), a economia das ações cartográficas verbais de João Louro são amarrotar (Mapa #01), amassar (moldando até se tornar uma esfera – isto é, embolotar –, como em Globo), cegar ou emudecer (Empty Map #11), entre outras hipóteses que constituem uma metodologia do geógrafo-artista. O mapa cego de Louro é um emblema do mundo contemporâneo, posto que desnorteia e desorienta. João Louro é um artista-geógrafo. Em paráfrase antitética de um verso de Adélia Prado, do poema “Legenda com a palavra mapa”, os mapas de João Louro não me descansam.

 

Trânsito multidirecional de ideias

Num conjunto de placas de sinalização de trânsito, João Louro revisita a cultura moderna do Ocidente com a filosofia (Land’s End) e com a linguística e a literatura (Linguistic Turning Point).

Tanto em Land’s End quanto nos Linguistic Turning Point, a polissemia das escolhas em todas as direções da palavra, na literatura, na linguística e na filosofia – Mallarmé, Peirce e Benjamin (exemplos de sua plêiade) – apontam para a língua/linguagem. Aonde se quer chegar com esse sistema de orientação? A lugar algum que não seja, antes de tudo, “a morada do ser”, do mesmo modo que Martin Heidegger, em Über den humanismus (1946), definiu a linguagem, como “a morada do Ser”.

 

Land’s End

As setas de Land’s End apontam em cinco direções: Sade, Wittgenstein, Benjamin, Beckett e Bataille. Não são caminhos de um flâneur, ao léu, no país do pensamento em que não importa aonde chegar. Land’s End é um extremo, um ponto onde acaba um percurso, o cabo onde termina uma região, o final da Terra, o Finisterra dos romanos, o lugar-onde-judas-perdeu-as-botas, o indizível wittgensteiniano – “Aquilo de que não se pode falar, guarda-se em silêncio” (25).  “Sempre tive esta atração do que foi o fim da terra, quando esbarra no mar”, revela João Louro sobre o fato a partir do qual só haveria o mar. Finisterra, ou Land’s End, a partir do qual só cabia a imaginação do espaço.

“É um tema muito português, num pequeno país, com uma frente marítima muito grande. Por desespero, provavelmente, mais até do que por aventura, foi esse o caminho de andar no mar e deixar a terra para trás”, completa o artista (26). O pensador da seta inferior é Georges Bataille, que é um dos oficiais de navegação da barca da filosofia moderna. Quando a direção de Bataille está apontada como uma via principal, ficam subentendidas as rotas “vicinais” ou sub-rotas do caudal maior de Georges Bataille: o marquês de Sade, Friedrich Nietzsche, Marcel Mauss, entre outras rotas. Sua base nos campos da filosofia, antropologia, economia, crítica literária, sociologia e história da arte e suas passagens pelo erotismo, pela transgressão e pelo sagrado ficam subentendidas (27). Na coletânea The Linguistic Turn: Essays in Philosophical Method (1967), o filósofo Richard Rorty se indaga sobre “qual verdade existe nesses sistemas filosóficos”, com tantas disputas, contradições e discórdias entre eles. Essa é a indagação que Land’s End lança sobre os espectadores. Na obra, que é a aludida variação espaçotemporal da orientação cartográfica, João Louro estabelece tanto diretivas quanto dúvidas sobre o problema da navegação entre ideias.

 

Linguistic turning points: literatura e linguística

No topo de Linguistic Turning Point (2005) estão escritas duas orientações: “Freeway entrance” e “Parole transparente”. Ao propor algumas perguntas a João Louro, recebi respostas surpreendentes, que são uma entrada transparente de sua autoestrada filosófica pela linguística. A sinalização de Linguistic Turning Point aponta para os desvios, as viradas e os cruzamentos na rota do conhecimento da linguagem. João Louro é um artista-engenheiro de trânsito de ideias. Para conservar o frescor de seu pensamento, apresentamos, a seguir, suas respostas na íntegra, bem como as questões que formulei, como uma entrevista.

Em seu suprareferido ensaio, Richard Rorty introduz ao espectro da história da doutrina do movimento filosófico da linguística. Na introdução do livro, Rorty argumenta que a história da filosofia pode ser estudada de dois pontos de vista distintos: o primeiro é o do historiador; o segundo, do filósofo. Em certo sentido, a obra de Louro Linguistic Turning Point tem algo do conceito de virada epistemológica da linguística apresentado por Rorty.

 

Paulo Herkenhoff

Crítico de arte. Foi diretor cultural do Museu de Arte do Rio, diretor do Museu Nacional de Belas Artes (2003-2006), curador adjunto do Museu de Arte Moderna de Nova York (1999-2002), curador da XXIV Bienal de São Paulo (1998), dedicada à Antropofagia e ao canibalismo social.