TREATY OF INVISIBILITY

TREATY OF INVISIBILITY
May 27, 2015 João Louro

Painting, sculpture, photography, video. João Loure uses the languages he speaks best to tell a story of the here and now, that takes inspiration from film and literature, finding substance in everyday things and completion only with the spectator. All summed up in “I’ll Be Your Mirror – Poems and Problems”, the exhibition that he is taking to the Venice Bienniale, like an unsettling song.

Text Maria João Guardão Photo Kenton Thatcher in UP

When he was asked what he wanted to be when he grew up, he answered: “I want to be a surrealist”. This was in family where being an artist was a flight of fancy and at an age when João Louro didn’t even really know what surrealism was. “I thought it was one long party. I had that idea of art as a place of absolute freedom and a desire to be an artist whose foundations were fragile albeit unshakeable. There was no plan B for me”. An all or nothing thing with no apparent root, apart from the rebelliousness of the kid who could be one of the teenage gang in Coppola’s Rumble Fish and who grew up focused on art in the Lisbon where he was born in 1963. He had his own struggles, he studied architecture while attending a painting course at the Ar.Co visual arts schools, making living. He taught and did illustrations, he rented a place, in Campo de Ourique and began toiling “like a working man”. That rebelliousness easily co-existed with “the very disciplined person” that he also was, even in his early twenties. “I worked eight hours a day, whether reading, cleaning the floor or creating something. I forced my body and mind into a routine that brought ways of working that still use today.”

He began exhibiting his work in Portugal and abroad. “There’s a point when you know that you’re no longer an amateur. When you say ‘I’m a professional at this’, for good or bad.” It was the early nineties and everything seemed possible in Lisbon. The world was being re-invented from Frágil, Manuel Reis’ bar that housed the avant-garde movements and folk in the Bairro Alto quarter that was undergoing a total transformation, which became the home, inspiration and result of a new generation of Portuguese artists, the one he belongs to; journalism and graphic arts were reinvented with O Independente, the newspaper run by Miguel Esteves Cardoso, Paulo Portas and Jorge Colombo, where he published his illustrations. Important examples for Louro, two of many at a time of everything and nothing, euphoria and consternation, the ideas of April Revolution waning and the scope of possibilities expanding, the first major steps in artists’ internationalization and the Gulf War exploding. “I am pretty much a product of that time and experience was a privilege. Every present has its own crisis and you have to be able to draw conclusions. We were all partying when the hatchet appeared”. That beginning and that time were essential for the understanding of things that are still at the heart of the works he creates and his take on creativity. “Art is trial and error until you achieve something. What is required of an artist is that they are capable of recording the time in which thet lived. It’s my advantage over any great dead artist, Warhol for example. He can’t talk about my time.”

This doesn’t mean that the insight that the past often provides us with is straightforward – distance makes understanding events easier, or perhaps it is the ability to embellish our memories is more complete –, escapes us in every present. Faced with such turmoil, João Louro chose to take a step back and, instead of adding, he subtracted. “There are times when I’m weary of the world as it is and that pushes me not into correcting it but rather to offer another vision of it. And that vision involves forgetting much, refusing many things. One of the first movements I started doing in my works, was erasing images.”

BOXING, CARS AND ROCK AND ROLL

He gave the name Blind Images to large black surfaces with captions that allude to an image that cannot be seen (and which curator Maria de Corral, with whom he will work again for the Portuguese participation, wanted to feature at the Italy Pavilion at the 2005 Venice Biennale). “I realised that having an erased image with a caption beneath it is very challenging and rich from an interior perspective. The brain doesn’t like empty spaces.” It is work that uses easily recognizable elements – Brigitte Bardot for example, a global but reclusive star – and which remains critical and open to the viewer. “That vocabulary is already within the viewer, I’m not putting anything new there. I’m not interested in the BB I have in my head. I’m interested in the Brigitte Bardot that’s in people’s head, that’s the one I’m looking for. I just offer a frame of possibility. I want the viewer to feel absolutely free to work with me, not to be led by the hand.” Louro uses painting, sculpture, photography and video to tell a story of the here and now that takes inspiration from film and literature, finding substance in everyday things. He starts with elements from the common domain and adds a twist to them. There’s something that transforms them, content, and overlap, an opposition, something that would contradict a natural understanding. “There’s a distortion of communication, a short-circuiting. That’s what I’m looking for, that mental short-circuit”. Something inevitable when looking at a battered Jaguar without wheels, covered in gold leaf, for example (The Jewel, 2005), another favourite tool. “The car boasts a wonderful characteristic: it makes up only a century of history of western humanity. It’s possible to start with a Ford T from 1900 and end with a Testarossa from the year 2000, and in that sense it’s a canvas containing danger, speed, design, beauty and adrenaline. It’s a key aspect in the cosmology of my universe.”

 

Pintura, escultura, fotografia e vídeo. João Louro usa as línguas que domina para contar uma história do aqui e agora que vai beber ao cinema e à literatura. Encontra corpo em coisas de todos os dias. Tudo sintetizado em “I’ll Be Your Mirror – Poems and Problems”, a exposição que leva à Bienal de Veneza como uma canção para desinquietar.

Texto Maria João Guardão Fotografias Kenton Thatcher in revista UP

Quando lhe perguntavam o que queria ser quando fosse grande, ele respondia: “quero ser surrealista”. Isto numa família em que ser artista era uma veleidade que não assegurava futuro e numa idade em que João nem sequer sabia bem o que era isso do surrealismo. “Achava que era uma festa contínua. Tinha essa intuição da arte enquanto lugar da absoluta liberdade e uma vontade de ser artista que era frágil nas suas bases mas indómita. Para mim não havia plano B”. Uma coisa de tudo ou nada sem raiz aparente a não ser na rebeldia do miúdo que podia fazer parte do bando de adolescentes do Rumble Fish/Juventude Inquieta de Coppola e que cresceu a educar-se para a arte na Lisboa onde nasceu, em 1963. Travou as suas lutas, estudou Arquitetura ao mesmo tempo que se inscrevia no curso de Pintura da escola de artes visuais Ar.Co, fez-se à vida. Dava aulas e fazia ilustrações, alugou um espaço em Campo d’Ourique e começou a trabalhar “como um operário”. A tal rebeldia sempre conviveu bem com “a pessoa muito disciplinada” que ele também era, mesmo aos vinte e poucos anos. “Trabalhava oito horas por dia, fosse a ler, a limpar o chão ou a fazer obra. Obrigava o meu corpo e o meu pensamento a uma rotina que me trouxe formas de trabalho que ainda hoje utilizo.”

Começou a mostrar obra em Portugal e além-fronteiras. “Há uma altura em que sabes que já não és um amador. Em que dizes ‘sou um profissional disto’, para o bem e para o mal.” Era o princípio dos anos noventa e tudo parecia possível em Lisboa. Inventava-se o mundo a partir do Frágil, o bar de Manuel Reis que juntava vanguardas num Bairro Alto em absoluta transformação, e que se tornou casa, causa e consequência de uma nova geração das artes portuguesas, a que ele pertence; reinventavam-se o jornalismo e as artes gráficas com O Independente, o jornal de Miguel Esteves Cardoso, Paulo Portas e Jorge Colombo, onde ele publicava as suas ilustrações.  São exemplos próximo de Louro, dois de muitos num tempo de tudo e do seu contrário, euforia e consternação, os ideais da Revolução a esmorecerem e o campo das possibilidades a alargar-se, a internacionalização dos artistas a dar os primeiros grandes passos e a Guerra do Golfo a explodir. “Eu sou um pouco filho desse tempo e foi um privilégio vivê-lo. Cada presente tem a sua crise e há que ter a capacidade de tirar ilações. Nós estávamos todos em festa quando apareceu o cutelo da morte.” Esse início e esse tempo foram cruciais para o entendimento de coisas que continuam no centro das obras  que cria e na sua postura perante a criação. “A arte é uma tentativa e erro até se conseguir alguma coisa. O que se pede a um artista é que tenha a capacidade de registar o tempo em que viveu. É a minha vantagem sobre qualquer grande artista morto, o Warhol por exemplo. Ele não pode falar do meu tempo.”

Não quer dizer que seja simples, a clarividência que muitas vezes o passado nos oferece – a distância facilita a leitura dos acontecimentos, ou talvez seja a capacidade de ficcionarmos as nossas recordações que é mais completa -, escapa-nos a cada presente. Face ao turbilhão, João Louro escolheu dar um passo atrás e, em vez de acrescentar, retirar. “Há momentos em que estou cansado do mundo como ele existe e isso impele-me não no sentido de o corrigir mas de propor uma outra visão sobre ele. E essa visão passa por esquecer muita coisa, por recusar muita coisa. Um dos primeiros movimentos que comecei a fazer no meu trabalho foi apagar as imagens”.

BOXE, CARROS E ROCK&ROLL  

Chamou Bind Images às grandes superfícies negras com legendas que aludem a uma imagem que não se vê (e que a curadora María de Corral, com quem volta a trabalhar agora na representação portuguesa, chamou ao Pavilhão Itália da Bienal de Veneza de 2005). “Percebi que ter uma imagem apagada com uma legenda por baixo é altamente desafiante e rico do ponto de vista interior. O cérebro não gosta de espaços vazios.” É uma obra que joga com elementos facilmente reconhecíveis – Brigitte Bardot por exemplo, estrela global mas reclusa – e que se mantém crítica e aberta ao espectador. “Aquele vocabulário já está dentro do espectador , eu não estou a colocar lá nada de novo. Não me interessa a BB que tenho na cabeça. Interessa-me é a Brigitte Bardot que está na cabeça das pessoas, é dessa que eu ando à procura. Eu só dou um frame de possibilidade. Quero que o espectador se sinta absolutamente livre para colaborar comigo, não para ser levado pela mão.” Louro usa a pintura, a escultura, a fotografia e o vídeo para contar uma história que vai beber ao cinema e à literatura e encontra corpo em coisas de todos os dias. Parte de elementos do domínio comum e aplica-lhes uma torção. Há algo que os transforma, um conteúdo, uma sobreposição, uma oposição, algo que contraria a lei natural. “Há uma distorção da comunicação, um momento de curto-circuito mental.” Algo inevitável perante um Jaguar amolgado e sem rodas, folheado a ouro por exemplo (The Jewel, de 2005), outra ferramenta de eleição. “O automóvel tem uma característica fantástica: por si só faz a história de um século da humanidade ocidental. É possível começar num Ford T de 1900 e acabar num Testarossa do ano 2000, e nesse sentido é uma superfície de inscrição, onde cabem também a perigosidade, a velocidade, o desenho, a beleza e a adrenalina. É um elemento fundamental na cosmologia do meu universo.”

É quase irresistível imaginar um dos carros de Louro capotados numa cidade sem automóveis, mas não é essa a história que se quer contar em Veneza. Artista e curadora querem falar da invisibilidade, daquilo que está lá mas não se vê. “O que me incomoda no mundo é a hipervisibilidade, a constante simulação que faz com que sejamos pouco críticos em relação à imagem, que não consigamos gerir ou digerir e por isso sejamos manipulados por ela. Eu quero contrariar isso. Quero falar do invisível, do que está  por trás, do que está escondido, tapado, velado, do espelho”. Lou Reed e os Velvet Underground já tinham o nome para a exposição que ele queria fazer, foi só tomá-lo de empréstimo e acrescentar duas palavras (e as palavras, sempre perigosas, estão no epicentro da obra dele). “I’ll Be Your Mirror – Poems and Problems” chamar-se-á, e passa por novas obras de três grandes séries de trabalhos de Louro: “Dead Ends”, sinais de trânsito que remetem para obras literárias e para os seus autores, “Covers”, grandes pinturas que representam capas de clássicos da literatura e, claro, as “Blind Images”. 

A representação portuguesa em Veneza está a ser preparada no império subterrâneo mas luminoso que João Louro e a equipa ocupam há um par de anos nas antigas instalações da Papelaria Fernandes em Campo de Ourique, 500 metros quadrados de ateliê com lugar para escritório, oficina e corner de boxe – “é aqui que dou tareia nos curadores”, brinca, enquanto faz a visita guiada pelo espaço, mas a verdade é outra. “As pessoas pensam que o boxe é coisa de arruaceiros mas é uma dança, uma atividade que exige muita disciplina e, sobretudo, um grau de superação muito grande, quer física quer psicológica.” Ele pratica a modalidade há mais de 20 anos e é treinador diplomado. Três fins de dia por semana dá aulas a um grupo restrito de amigos, com vários níveis de aprendizagem. “O boxe traz relações de camaradagem muito fortes, de brotherhood, aqui ninguém bate em ninguém, aprende-se sobretudo a técnica: o movimento do boxe tem que ser treinado e executado muitas vezes para ser fluido e belo.” Há uma Blind Image que alude a um poeta boxeur e, na vida de Louro, há um buldogue francês chamado Lennox, em homenagem a Lennox Lewis, o pugilista que pôr Mike Tyson K.O. antes de se retirar da competição em que se sagrou campeão do mundo de pesos pesados e medalha de ouro olímpica.